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O furo pelo qual se motiva a idéia do todo

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“O furo pelo qual se motiva a idéia do todo”[1]

René Lew

Eu já comentei pelo menos cinco vezes este texto de Lacan que serve como resumo de seu seminário O Ato Psicanalítico, e uma sexta vez está à espera[2] (sem falar do presente comentário), sobre tal ou tal parte. Abordarei aqui um outro ponto do texto do que aqueles estudados anteriormente, um ponto relacionado à discussão começada durante o colóquio de Dimensions de la Psychanalyse, no 8 de outubro passado, a propósito do universal e dos universais. Irei também no sentido do que já comecei a precisar ontem na Lysimaque a propósito do nominalismo e do realismo[3].


A opinião de Jeanne Lafont, exprimida no colóquio de Dimensions de la Psychanalyse, relativa ao fora do campo de visão[4] (hors point de vue), cujo conceito eu advogo, era que o fora do campo de vista, quando se procura uma apreensão do conjunto da estrutura, abriria ao universal em um risco totalitário (sublinhado por Frédéric Dahan, que aí integraria o escape[5] [échappement], se este estiver falhando)[6]. Ora, considero que o fora do ponto de vista, integrando o héteros (os lógicos dizem “desviantes”, segundo Quine) não totaliza nenhuma lógica canônica. Não somente meu uso do quadrângulo lacaniano integra o vazio como função de abertura (bem marcada pelo conceito de escape), mas também a contingência, ambos se desenvolvendo em estrutura de esvaziamento da fundação e da incerteza sobre a produção[7]. Para mim (seguindo Lacan), o vazio se inscreve em falha na estrutura e esta falha se transcreve em falta no real, fazendo borda ao furo que o litoral (como clivagem colocando em continuidade os elementos que ele separa) esburaca enquanto corte.


Quanto à contingência, eu inscrevo o propósito no caminho subjetivo que, enquanto uma decisão se apresenta ao sujeito, implica a necessidade de escolher sem que a escolha esteja suportada ou que se saiba a que ela leva - de modo contingente, precisamente -, mesmo se o real que determina se imponha como tal (com seu peso de impossibilidade) ao sujeito que não pode mais. Esta contingência fazendo laço com a necessidade organiza uma lacuna daquela com o real que é produzido pelo modo que eu acabo de descrever. Esta lacuna (Enstellung[8]) invalida toda a inclinação do absoluto de totalização, de universalidade - e mesmo de fundamento assegurado por antecipação.


É sobretudo o escape com relação ao indiferenciado produzindo um a mais (en-plus) que permite novamente escapar à totalização.


*

Vou então sustentar novamente minha concepção de estrutura lógica do sujeito em sua relação às coisas a partir do resumo do seminário de 1967-68 feito por Lacan.

Este laço do contingente com o necessário, que acabo de evocar, Lacan o aponta de início a propósito “do momento eletivo em que o psicanalisante passa a psicanalista” (p. 375). Eu diria que esta passagem, de contingente que ela é inicialmente, torna-se necessária a partir do momento em que é efetuada. Que um ato esteja aí em jogo, nada de mais certo, que mude o real, ao fazê-lo depender - a cada etapa do tratamento - de um a mais (en-plus) que suporte por sua vez a função que ele induz.


Isto indica bem o modo de reversão (retrogradiente) que articula também a contingência à necessidade.


Esta reversidade é recursiva, pois implica em sua ação, aquilo que ela espera produzir. E aquilo que ela espera produzir, no ato, é “mudar o sujeito”, e mesmo dar-lhe existência e consistência no seio de um mundo que o olhar novo do sujeito poderá modular de modo diferente. A recursividade é assim mais garantida quando ela opera após um dizer (rico em nominação): (dizer - (função de ato - sujeito)). Esta recursividade está explicitamente implicada por Lacan em sua proposta: “O ato psicanalítico parece propriamente a reverberar mais luz sobre o ato do que aquilo que seja ato a se reproduzir [à se produzir], do fazer mesmo que ele comanda[9]. Certamente o discurso de Lacan substantiva demais as funções, melhor seria conservar os verbos (dizer, fazer, agir ou, mais exatamente: fazer ato de), o esvaziamento funcional aí seria mais garantido.

Entretanto, o escape se assegura já aqui de uma involução (este termo tomado da Lógica do fantasma) marcada como destituição (p. 375 ainda). O só-depois (après-coup) vem aí, de fato, como antecipação, não sem escolha, uma vez que ele se trata “de decidir se a retransmissão pode ser colocada em ato tal como ele destitui no final o sujeito [suposto saber] que o instaura [e, reversamente: que ele instaura]” (ibid). Este só-depois é retrogradiente no ato de antecipar por projeção sobre o que ele seria suposto induzir: que a destituição do sujeito (suposto saber) se apresente como a (naquilo que concerne o que se trata do analista deste sujeito reversivo entre analisante e analista). Está aí toda a involução. Antecipação: esta destituição experimentada (provada?) pelo analisante no fim do tratamento, ele lhe dá como visada de sua posição de analista enquanto passa ao ato sobre o outro lado. Também o ato é ele bem estritamente reversivo. E nesta reversão o sujeito passando a analista se informa ele próprio de um porvir da destituição - um porvir em tanto que falta.

Este objeto a, Lacan o qualifica de em-si, ao menos enquanto que marca de uma consistência lógica (p. 375, repetido na p. 377: “nada indica que o objeto a não tenha uma consistência lógica que se sustenta de lógica pura”).


*

Mais diretamente: não há ato que não do objeto a; entendamos: uma falta feita objeto. Aquilo que falta sublinha objetalmente que o Outro não tem existência garantida e, mais ainda, se há alguma garantia, é de sua inexistência - se pelo menos “garantia” aqui significa: colocação em jogo significante. Uma vez que não há significante que na recursividade dê seu lugar a um outro, o que não garante nada, nem mesmo a passagem metonímica de um significante a outro. Esta recursividade faz com que a estrutura do Outro dependa de uma lógica que implique que esta estrutura “não vá recobrir-se a si própria” (p. 377). Ao inscrevê-la como S(A barrado), este não recobrimento é certamente recursivo[10], uma vez que aquilo que é produzido não é senão que a estrutura de uma involução específica do trabalho significante.

Insisto: é a recursividade do significante que se inscreve em furo contra todo universalismo. Por aí não há psicanálise e tratamento psicanalítico que não na singularidade que uma posição analisante assumida e bem conduzida possa impor. Se julgarmos pela repetição do termo “comanda(r)” que tinge regularmente este texto - e que eu não comente aqui apesar de todo o interesse que teria em considerar esta modalidade deôntica do imperativo e da obrigação (exigência pulsional, obrigação do advento subjetivo, comando do supereu, imperativo do gozo, etc), as quais deslocam pela sua diversidade e pelo seu impacto todo princípio de diretividade significante monomórfica e então de direção do tratamento especificado pelo avanço e unilateralmente. Em face do que, não há nada de universal, nem mesmo o que Lacan chama “de psicanalista” (du psychanalyste)” (p. 378).

De todo modo, falar de lógica, como o fez Lacan, não basta. Ainda deve-se especificar sobre a aquilo entre a série de lógicas “desviantes”- ou, se não, ela fica a construir a partir destas “razões” no meu ponto de vista incontornáveis que são a reversividade, a recursividade, a impredictibilidade, a impredicabilidade, a contingência...[11] Para sublinhar a reversiviade do significante, eu direi que o esvaziamento contrabalança o universal, mais, entretanto, funda-o.

A dificuldade com a qual se confronta Lacan é, entretanto introduzida pela sua própria linguagem, essencialista, ao menos em sua forma. Uma vez que “objeto a” não é O objeto a, nem do objeto a (de l’objet a), mais um objeto a. Uma tal linguagem essencialista parece contradizer a involução e a recursividade significantes, mas é de fato para aí voltar desde que possível.

Resta que no fundo da afirmação de que “o psicanalista se faz de objeto a. Se faz, a entender: se faz produzir de objeto a, com o objeto a” (p. 379), subsiste a questão de precisar como opera esta produção. Um índice e um modo de acercar-se da resposta a esta questão leva em conta os quantificadores.

Sabe-se que eu prefiro cotificação (ou quotificação), forma (modal, certamente) de organizar a dialética funcional intensão/extensões[12].


Esta dialética, eu já a precisei como a colocação em continuidade dos modos de esvaziamento.


Este modo - dado aqui, como “o furo pelo qual se motiva a ideia de todo” (ibid), mais além desta razão constitutiva - torna caduca a própria totalidade, que não se produz que a fim de desaparecer ou, pelo menos, de ser contrabalançada por, digamos, suas negações: não-toda, existência, inexistência, como modo de involução do todo.


De todo modo, o eixo dominante é aquele do amor pelo objeto (entretanto também a interdição do incesto e operando de universal à inexistência). É portanto o mérito dos quantificadores não satisfazer à uma apreensão (do sujeito, digamos) no universal (ibid)? De todo modo, para Lacan, não há “ideia do todo” que tenha como levar em conta ao mesmo tempo estes modos negativos do todo.

Ao partirmos do a corre-se o risco de cair na interpretação paranoica do todo. Daí a elação quase parafrênica do negador na síndrome de Cotard em que o desmentido (Verleugnung[13]) que aí opera atinge preferencialmente o objeto a (o supra-numérico). Mas o ato analítico permite experimentar positivamente a estrutura da perda conclusiva de um tratamento analítico ao supor que este objeto caído (mais além de ter sido perdido) seja recolocado em jogo pela palavra terceira do passe. No mínimo, o objeto focaliza esta passagem, notada caso contrário como maníaco-depressiva por Lacan. Daí, novamente, a importância de Cotard.

Apesar da opinião de Lacan, não concebo, entretanto que possa existir um cúmulo da experiência analítica, uma vez que ele não poderia (à diferença do que implica a capitalização da mais-valia) haver acúmulo do objeto a como mais-de-gozar (Lustgewinn[14]). Como alguém poderia, de fato, apropriar-se do mais-de-gozar de um outro? Tanto o mais se pode extrair-lhe a mais-valia que ele produz - para transformá-la de valor em uso em valor de troca. Quanto ao mais-de-gozar, ele não é nem de uso e nem de troca, salvo talvez negativamente no amor quando “eu te demando refusar o que eu te ofereço, uma vez que não é isso”. Em que tomar o excesso de gozo de um outro (se isso fosse possível) me ajudaria em algo nas dificuldades que experiencio face ao meu próprio gozo? Aqui somente o narcisismo primordial da identificação paterna opera e nada do gozo objetivado (ou pelo menos objetalizado) como Outro.

*

Retomemos, para desenvolver em detalhes, este argumento que Lacan coloca então logicamente sob a forma que eu retranscrevo segundo a compreensão que tenho: uma falta (um furo) é necessariamente do todo, e o todo suporta por este apoio as oposições que lhe são feitas. Notemos de passagem que três anos mais tarde, escrevendo “O aturdito”, Lacan apresentará menos uma falta do que um vazio existencial (metaforizado pela incorporação do “Um-Pai”) fundando o universal e contendo a extensividade. Entretanto, eu não penso que a segunda destas opções lógicas apague a primeira. São dois modos da desconstrução/construção. Um parte do “conteúdo” do universal proposicional (e não menos modal) para a existência modal, o outro, do interdito do incesto. O terceiro modo é aquele da falha como não-relação sexual entre o todo e o não-todo. Mas de fato, esta falha impede todo laço direto do não-todo ao todo.


O lugar deixado furado pela queda do objeto a no fim do tratamento é aquele, ôntico, da impossibilidade (no que concerne o real) e, deôntico, do interdito (no que concerne ao incesto). E a função existencial (intencional) do Pai restringindo a expansividade da extensão universal. Tudo isto é legível em “O Aturdito” (em particular a metáfora do incesto para especificar o laço da verdade com o real). Ora, o eixo do interdito do incesto é também aquele do amor (masculino, segundo Freud) pelo objeto (materno).


É, insiste, sobre a passagem do vazio à falta - e retorno (pela litoralidade da borda) [15].

Sigamos então a proposta de Lacan de Junho de 1969 (a redação deste resumo se situa pelo fim do ano universitário em que Lacan manteve o seminário De um Outro ao outro). Como se produz a psicanálise a partir do e com o objeto a? Dito de outro modo, como, de uma parte, se faz a passagem inversa nos mesmos termos, daquilo que é construção do mundo, do Outro, e do discurso, esta construção indo da intensão significante à extensão objetal? E, de outra parte, esta passagem inversa não passaria também pelo interdito do incesto e o laço do conteúdo da extensão significante pela palavra?


Note-se que a segunda opção corresponde por uma parte à passar da indiferente ao diferente (em particular sexual) pela via da excitação e da diferenciação à produção pela via da descarga.


Novamente uma opção de désaificação (désaïfication). “A amostra corporal”, da qual fala Lacan a este respeito (ibid) é mais presente na síndrome de Cotard. Isto demanda ao psicanalista (e sobretudo ao psicanalisante no passe) de deixar de lado pulsão, moção pulsional, e defesa com a respeito da pulsão. A psicanálise não poderia de todo modo ser um pai ao estilo Shylock.

Em “substância”, as coisas do mundo concernem o sujeito ideal, idealisante e idealista ele próprio.


- mas na recursividade fundando esta estrutura do conjunto do sujeito (fora do ponto de vista) fora de toda ontologia.



[1] LACAN, J. Compte reundu du séminaire L’acte psychanalytique, Autres Écrits. França: Seuil, p. 379.

[2] Em 1992, colloque Lysimaque sur « L’acte psychanalytique » : « Aussi bien l’acte lui-même ne peut-il fonctionner comme prédicat » (cf. Autres écrits, p. 378) ; em 1995 (s.r.), séminaire sur le transfert, Bruxelles, commentaire de l’aphorisme « pas de transfert du transfert », et de la référence qui, pour lui servir d’appui, est donnée ici pour l’unique fois (ibid., p.383) ; em 2002, colloque de Dimensions de la psychanalyse sur la formation du psychanalyste, « Théorie de la limite fondatrice en psychanalyse, son rapport à la formation du psychanalyste »; em 2008, colloque de Dimensions de la psychanalyse : « Désidentification et désaïfication » (ibid., p. 379); em 2011, en réponse à un argument de Frédéric Dahan pour un colloque, « L’illisible entre psychiatrie et acte analytique », « Qu’est-ce que lire en situation de psychose ? » (ibid., p. 382 sur l’illecture) ; em 2012 : participation aux mercredis du Cercle freudien, « L’incurable » (ibid., p. 381).

[3] LEW, René. “Nominalisme, idéalisme, anti-ontologie”, Lysimaque, 15 de Outubro de 2011.

[4] LEW, René. Le hors point de vue, Lysimaque, no prelo.

[5] LEW, René. L’échappement ou Le ratage signifiant au centre de la cure ou Comment jouer de négativité à bon escient, Convergência, Buenos Aires, Abril de 2011.

[6] Eu deixo em suspenso a preocupação de afinar cada uma dessas proposições - a fim de que nós avencemos este debate.

[7] Cf. LEW, René. L’incertitude du signifiant. Montréal, 23 de Outubro de 2011.

[8] Em alemão, no original (N.T.)

[9] Ibid. Grifos do autor.

[10] Cf. “Pas sans S(A barrado)”, Actes de l’E.C.F. no. 18, 1990.

[11] LEW, René. “A incerteza do significante”, Montréal, 23 de Outubro de 2011.

[12] “Cotificação” vem de “cota”, tradução de Betrag de Freud: Affektbetrag = cota afetiva (Freud em francês: valeur affective [valor afetivo]).

[13] Em alemão, no original (N.T.)

[14] Em alemão, no original (N.T.)

[15] Há tempos Lacan havia avançado sobre esta questão da colocação em furo do sujeito, em sua “Remarque sur rapport de Daniel Lagache”, em Écrits, Seuil, em particular, pp. 668-670, 677.