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A LÓGICA DO ATO NA EXPERIÊNCIA DA ANÁLISE

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A LÓGICA DO ATO NA EXPERIÊNCIA DA ANÁLISE[1]

Isidoro Vegh[2]

Resumo: O texto trata da especificidade do ato analítico a partir do início de uma análise, quando o silêncio do psicanalista convoca a fala do sujeito alienado na posição de objeto do Outro. Sustenta a lógica de que propiciar o ato é congruente com a castração, mas propõe ir mais longe ao passar da incompletude do inconsciente ao limite do real.

Palavras-chave: ato, alienado, castração, inconsciente.

 

 

THE LOGIC OF THE ACT IN THE ANALISYS’ EXPERIENCE

Abstract: The text deals with the specificity of the analytic act from the beginning of an analysis, when the silence of the psychoanalyst calls upon the speech of the alienated in the position of the object of the Other. Sustains the logic that providing the act is consistent with the castration, but proposes to go further by passing from the incompleteness of the unconscious to the limit of the real.

Keywords: act, alienated, castration, unconscious.

O título que propus leva em conta as jornadas, e sua convocação menciona uma lógica. Animo-me a sustentar que a obra de Lacan caminha em duas pernas, uma retórica e uma lógica, uma poética e uma articulação lógica. Cada uma faz de limite à outra, porque nem uma nem outra pode dizer tudo. Simplicidade não é o mesmo que pobreza. O simples sempre está ao final de um percurso. O simples quer dizer que se logrou uma lógica. Vamos ver se posso expor, dentro de minhas possibilidades, o que poderia ser a lógica do ato a partir de meus referentes maiores, Freud, Lacan. Vou, então, desdobrar o que Lacan nos propôs quando veio à América, a única vez, em Caracas, quando disse: “eu sou freudiano, se vocês quiserem sejam lacanianos”. Como entendo essa frase? Que quer dizer para mim, que Lacan se nomeie freudiano? Aquilo que nos mostra sua obra e seu ensino: soube interrogar Freud. Então, seguindo seu ensino, entendo que ser lacaniano é interrogar a obra de Lacan.

Vamos realizar o que chamo a estratégia das dobras, acorde com a lógica do significante, que rompe com a ideia do tempo linear e nos apresenta um tempo de antecipações e de retroações. Costumo dizer que après-coup é um tempo ético. Proponho que façamos com a obra de Lacan a dobra do que ele desenvolveu em distintos tempos de sua obra e de seu ensino.

Em princípio vou partir de um seminário, e especificamente, de duas aulas desse seminário. O seminário se intitulou O ato analítico([1967-1968]2001], as aulas que vou tomar são as de 10 e 17 de janeiro do ano 1968. Esse seminário, segundo minha leitura, logra concluir o que no seminário anterior, A lógica do fantasma([1966-1967]2008), Lacan avança, mas fica no tempo de compreender. Recém neste seminário pode concluir com o que ele entende e propõe como ato. Não se trata do ato em geral, mas do ato analítico. Assim, dizemos uma primeira tese: só há ato analítico na experiência da análise. Também há ato fora da análise, mas não é ato analítico, é ato. E o que, dizemos junto com Lacan, é um ato? Dizemos que há ato cada vez que algo novo começa. Por exemplo, aproxima-se o fim do ano e vai começar um ano novo. A Terra faz, segundo nos ensinou Kepler, seguindo Copérnico, uma elipse ao redor do Sol. Qualquer ponto dessa elipse, quando se repete, cumpre um ano, um ciclo – ciclo vem do grego kyklos, quer dizer círculo. Nem a Terra nem o Sol podem decidir qual vai ser o ponto da elipse que vai ser utilizado para dizer “aqui marcamos que termina o ano 2010 e começa o ano 2011”, não o decidem os astros, decide-o o significante. O significante o decide até tal ponto que esse dia é marcado com algo que para nós, psicanalistas, é o paradigma do simbólico. O que diz o calendário que é o 1° de janeiro? A circuncisão de Nosso Senhor. O que é mais simbólico que a circuncisão? Na tradição monoteísta, na qual nos inscrevemos – judaísmo, cristianismo, islamismo –, marca o pacto do sujeito com o Outro. No relato bíblico, é o pacto do protopai, Abraão, com Deus: Deus não pedirá mais sacrifícios, não se matarão mais filhos e, em troca, o sujeito Abraão aceita uma perda, que não se dá em qualquer parte, mas no órgão do gozo, símbolo de uma perda de gozo. Nós, os psicanalistas, seguindo Freud, a chamamos proibição do incesto. Todo ato implica um significante.

Agora bem, vamos à especificidade do ato analítico. Primeira condição para que haja ato analítico: tem que ter havido um psicanalista. Digo-o com um aforismo: a tarefa é do analisante, o ato é do analista. Temos, nos diz Lacan, dois paradoxos notáveis para alguém que viesse de outro campo: lhe resultaria surpreendente que relevamos como ato logrado o ato falho, que o lugar onde somos especialmente convocados pelo discurso do analisante é o lugar onde seu dizer consciente balbucia, gagueja, comete lapsos, repetições impensadas. E, por outro lado, nós que falamos do ato, convidamos nossos analisantes a que se abstenham de fazer, a que se recostem no divã, que somente falem. Regra fundamental: diga o que lhe ocorrer. O que nós chamamos ato parece que tem certa singularidade. Inclusive, como diz Lacan, o ato não é o Agieren, o fazer, e dá o exemplo: quando Júlio César, desobedecendo à ordem que lhe chega de Roma, cruza o Rubicão, com seu exército vitorioso de retorno das Gálias. Cruzar esse rio, como fato físico, era insignificante, era mínima sua largura, teria um metro, dois. O que o converte em ato é que nesse momento faz uma transgressão, desobedece a uma ordem, manifesta sua decisão para algo novo, a tomada do poder.

Lacan nos diz que, para entender o que é o ato, nada melhor que acudir a um grande poeta, Arthur Rimbaud. E menciona um poema

Por uma razão.

Por uma razão

Um toque de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia.

Um passo teu recruta novos homens, e os põe em marcha.

Tua cabeça se vira: o novo amor! Tua cabeça se volta: o novo amor!

“Muda nossos destinos, acaba com as calamidades, a começar pelo tempo”, cantam estas crianças, diante de ti. “Semeia não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos”, pedem-te.

.Chegada de sempre, que irás por toda parte.(Rimbaud,apud Lacan,2001)

Cabe dizer o novo amor ou o novo desejo. Esse golpe no tambor é o significante que soa. Esse significante que quando se repete marca o ato, e quando há ato algo novo começa, um novo amor, um novo desejo, até, diz Lacan, o desejo do revolucionário. E diz, no final, porque se trata de “Por uma razão”, uma invocação. O final do poema diz: chegada de sempre, que irás por toda parte. Os comentaristas desse poema dizem que é enigmática essa frase, que convida a uma interpretação, pode haver outras. A minha, fazendo a dobra do texto, é que se o título diz “Por uma razão”, deve ser que o poeta adverte que há mais de uma razão. Que uma coisa é a razão consciente do “Eu penso”, e outra é a razão com a que o poeta pode nos acercar da verdade. Quando as palavras renunciam ao sentido consagrado, nos acercam de algo distinto.

Convido-os a que trabalhemos juntos um quadro que Lacan nos propõe neste seminário, que tenta mostrar uma lógica do ato.


Em seu início, alguém demanda uma análise, supõe-se que o faça com sua estrutura constituída. Os dois círculos que se interseccionam, acima à direita, é o que Lacan trabalha no seminário Os quatro conceitos (Lacan [1964]1988), a intersecção do sujeito e o Outro. Com sua dupla operação: um primeiro tempo quando o sujeito se aliena no Outro e um segundo tempo de separação.

Partimos da asserção de que um analisante vem com sua estrutura constituída, funcionando a pulsação do Inconsciente. Se o analista se situa na posição conveniente, vai definir se isso vai ser psicanálise ou psicoterapia. Se vai ser psicoterapia ou uma entrevista psiquiátrica, o paciente virá e o psiquiatra ou o psicoterapeuta lhe dirá: – Bem, o que lhe sucede? – Tenho angústia. – Diga-me desde quando, mais à manhã, mais à tarde? Toma algo? Um interrogatório. Se é um analista, com cordialidade o faz passar e, se pode suportá-lo, nem sequer lhe diz onde tem de sentar-se. Espera para ver o que sucede. E o analista faz algo, o que faz? Faz silêncio. Não é que fique calado porque a pulsão de morte o domina, expressamente faz silêncio. Um silêncio que convida a falar.

Se nessas entrevistas, que costumam se chamar preliminares, se formula uma demanda de análise, quer dizer que quem toca nossa campainha, quem acode a nosso consultório, adverte que há algo que escapa ao saber que tem para dar conta de seu sofrimento. Costumo diferenciar entre dor e sofrimento. Não se diz me dói um sofrimento, entretanto se diz sofro uma dor: o sofrimento é uma primeira resposta à dor. Se conseguimos nas entrevistas, ou pelo próprio sintoma, que o sujeito advirta que desse sofrimento há um saber que ele ignora e situa a possibilidade desse saber no analista – há intervenções do analista que permitem propiciá-lo –, o sujeito vai começar a falar. E quando alguém fala seguindo a regra fundamental, o convidamos a que, como diz Freud, diga o que lhe ocorrer, sem se preocupar qual é a razão, se é correto, se é importante ou não, que fale, o instalamos em uma pequena armadilha: no labirinto de suas palavras, o convidamos a sua alienação, a que advirta que a razão está fora de seu Eu. Alienação quer dizer fora de si; trabalho alienado, como dizia Marx, é um trabalho cujo ganho fica fora do trabalhador. Produzir-se-á então um efeito. Um efeito que nos convida a retrocedermos ao tempo de Freud.

Imaginemos Sigmund Freud sentado em Viena, sua paciente deitada no divã, e de pronto a paciente diz: sim, Herr Professor, eu não sei por que chego em minha casa nervosa e me ponho a gritar para as crianças, e depois não sei por que vou à geladeira e como mais do que teria que comer, eu não sei por quê. Então Freud pensa: se Eu não sabe, quem sabe? Ponhamos um nome, ponhamos em vez de Eu, Isso. Isso sabe. É o lugar do “Es” – em alemão Isso se diz “Es”. E esse “Es” quer dizer então: “Eu não penso, Isso pensa”. Alienação. Alguém que não soubesse como segue, poderia dizer-nos: – Nunca escutei semelhante maldade, convidar alguém a falar para que descubra que não sabe o que diz e, ainda por cima, cobrar dele. Por sorte, a telenovela segue. Segue e vai se produzir o que Lacan chama a operação verdade, que, por efeito da transferência, haverá um movimento pelo qual o sujeito vai advertir que isso de que sofre é de algo que o tem preso, que a razão de seu sintoma é que sofreu, se é um neurótico, provavelmente uma regressão. Que sofre de uma “Fixierung”, de uma fixação. Fixação a quê? A um gozo. O neurótico é aquele que retrocede, regride seu desejo à demanda do Outro. E é “Eu não penso porque sou”. Eu não penso porque sou o objeto, estou identificado ao objeto, em algum lugar de minha estrutura, ao objeto de gozo de um Outro. Escutamo-lo dos modos mais simples. Por exemplo, uma analisante arquiteta toda sua vida sonhou que quando se formasse iria à Europa para ver aquelas enormes construções de tantos séculos. Vem à sessão angustiada. “O que lhe sucede? – Ai, doutor, tantos anos sonhei com esta viagem, e veja como estou angustiada, porque pobre da minha mãe, tão velha, posso deixá-la só tanto tempo?” Está convencida de que ela é o objeto que garante a vida e a saúde de sua mãe. Vou lhes contar um chiste. Uma filha, também muito carinhosa com sua mãe, lhe diz: – Mamãe, vamos juntas ao sul da Argentina, a Bariloche; pego dois camarotes no trem e desfrutamos. – Que bom! – diz-lhe a mãe. Chegam à estação do trem, vão ao restaurante, a filha a agasalha com o melhor, deitam-se, a filha tira a roupa, veste a camisola, se despenteia, vê contente como sua mãe se deita, sorri cheia de felicidade, pela felicidade que dá a sua mãe, apaga a luz e então escuta: – Ai, que sede tenho! Ai, que sede tenho! – Mas, mamãe, já é de noite, o restaurante está fechado. Mas a mãe não parava. A filha se dá conta de que não há solução, diz a si mesma: bem, é uma mulher velha. Tira a camisola, volta a se vestir, se arruma um pouco, caminha 1, 2, 3, 10 vagões, bate, explica ao guarda, “minha mãe velhinha, sim por favor”, ele lhe dá a água, ela volta os 10 vagões, serve a mãe, a mãe toma. Está contente, diz a si mesma, minha mãe, uma mulher de idade. Volta a tirar a roupa, se despenteia, se deita, apaga a luz e então escuta: – Ai, que sede que eu tinha! Quando a analisante descobre que a mãe seguirá assim, decide continuar a análise. E continua a análise graças a que o analista está disposto a suportar na transferência tanto o lugar da mãe como o lugar do objeto tiranizado. Presença do analista se sustenta no desejo do analista. Aí se prova se há ou não há desejo do analista. Quando se chega a esse ponto, e suspeito que no Brasil também, muitos colegas nesse momento decidem ir ao coro da Igreja, outros se inscrevem em uma oficina de pintura, algo que os subtraia desse tempo passional. Pois bem, se o analista o sustenta, se produzirá algo novo. Passar-se-á desse “Eu não penso” ao que chamamos o Inconsciente como lógica de incompletude. E será então o tempo do “Eu não sou”. Ali onde Descartes diz penso, logo existo ou penso, logo sou, nós colocamos “Eu não penso” e “Eu não sou”. Eu não sou, atravessei na transferência esse ponto, eu não sou mais o objeto de gozo do Outro.

Para isso, terão de se produzir, do lado do analista, dois fenômenos: por um lado, chegado o final da análise, ele cairá de seu lugar de Sujeito suposto Saber. Há um des-ser do analista. Foi pensado a partir de outros campos e desde tempos imemoriais. No século XX foi retomado por essa grande lutadora, que é Simone Weil, uma personagem estranha que vinha do judaísmo, passou ao cristianismo, esteve nas lutas obreiras, se ofereceu ao general De Gaulle para fazer um grupo de enfermeiras na Segunda Guerra. Em um livro que se chama La pesanteur et la grâce, “A gravidade e a graça”(Simone Weil,2004), explica que, para que o ser humano exista, Deus tem que se descriar, porque se Deus é, como dizia Descartes, o conjunto dos atributos positivos levado a seu grau extremo, ocuparia todo o espaço, não haveria lugar para a criação. É um dom divino retirar-se para que haja criação. Ela não o menciona, mas isso foi dito muito antes por Lúria, um místico judeu que viveu em Safed, uma cidade que ainda subsiste em Israel, a cidade dos cabalistas. Lúria colocava que, para que pudesse haver criação do universo, portanto também do homem, Deus tinha que se retrair, deixar lugar. Pois bem, eu digo que neste des-ser que Lacan propõe para o analista, quanto ao Sujeito suposto Saber, é o mesmo. Que o analista deixe de ser esse Outro que sabe, tempo de idealização, é o que permite que emerja o sujeito. Como diz Lacan, como manque-à-être. Se tomamos o chiste que lhes contei, manque-à-être não é um termo filosófico, é psicanalítico: Falta-em-ser, deixo de ser a filha que está destinada a acalmar a sede de sua mamãe. Não é filosofia, é psicanálise.

E do outro lado, Lacan põe –φ e o objeto a. Por que o objeto a? Pelo que lhes disse, o analista a partir do ponto T (ver quadro) teve que sustentar o lugar desse objeto de gozo. Então, se aceitamos a simplicidade desse quadro, vou propor como eu penso a fórmula mínima do ato. Lacan aceitava o que é um dos anelos da ciência moderna, a escrita mínima. Por exemplo, Lacan não usa S1, S2, S3, S4, só S1 e S2. S2 é o conjunto dos significantes, é o saber. Um saber é o quê? Um conjunto articulado de significantes. E S1, que é o significante que surge representando o sujeito por retroação. Pois bem, seguindo esse anelo que Lacan nos propõe e que compartilhamos, eu proponho como fórmula mínima do ato analítico o que vou escrever agora.


Que quer dizer o que escrevi? Quando o neurótico acode com sua demanda de análise é porque, sem sabê-lo – por isso está sob a barra, é a barra da repressão –, ele sustenta , identificado a um objeto, a ilusão da completude do Outro. Propiciar o ato é congruente com a castração. Por que escrevo castração como escreve Lacan, com -φ Uma questão de lógica. Se aceitamos, com Lacan, que o Inconsciente – e isso é porque Lacan leu Freud muito bem – só é constituído por “Vorstellungsrepräsentanz”, por significantes, não há afetos no Inconsciente – Freud o disse várias vezes, “quando digo sentimento de culpa é uma maneira leviana de falar, não há sentimentos no Inconsciente”. “Vorstellungsrepräsentanz” é comumente traduzido como representante da representação ou, em terminologia lacaniana, significante. Pois bem, se o Inconsciente é um “software” constituído por elementos discretos, responde à teoria dos conjuntos. E já desde os primórdios do século passado, com os paradoxos de Russell, se sabe que se o subconjunto vazio não é incluído como parte de um conjunto, entra-se em contradições de 2+2 é 4 e 2+2 não é 4. O que quer dizer que o Inconsciente, como um conjunto, tem também um subconjunto vazio?


Que há ao menos um elemento do conjunto que não lhe pertence. Pois bem, se quero traduzir isso para termos psicanalíticos, proponho que esse conjunto incompleto possa ser escrito com os matemas lacanianos, que é como Lacan escreve o Inconsciente na lógica de incompletude. E esse significante que, ao estar fora do conjunto, passa a ser o significante da falta no Outro é o falo simbólico. Falo simbólico que, diz Lacan, é impossível de negativizar. Se o negativizo, negativizo o que presentifica a incompletude do Inconsciente; por isso só posso escrever a castração com –φ, que é o falo imaginário. Nesse caso, escreve uma falta imaginária que representa uma falta simbólica. E isso significa o quê? Significa duas coisas: por um lado, o objeto a tem dois valores. Lacan lhe põe dois nomes: “plus-de-jouir” – mais-de-gozar – ou objeto causa de desejo. Como “plus-de-jouir”, costumo dizer, é um pacotinho de gozo que pode funcionar como tampão – é o que víamos no exemplo da filha com a mãe. Pois bem, dizemos que se uma análise avança, permite passar do mais-de-gozar ao objeto a como causa de desejo. Então, podemos entender quando Lacan, aqui abaixo (ver quadro), põe “faux-être”, falso ser. No final da análise, o analisante descobre a falsidade desse lugar onde ele se oferecia como sendo o que podia acalmar eternamente a sede de sua mãe. Do outro lado põe “n’y être pas”, não ser mais aí. É o sujeito como falta em ser. Uma das habilitações de uma análise é poder se reencontrar com o objeto causa de desejo, endereçar o fantasma, situar um sujeito que sustenta seu desejo graças a que algo lhe falta. Lacan, de brincadeira, dizia: pobres dos ricos. Por que pobres dos ricos? Quando alguém crê que tem a completude, tampona o desejo.


Mas disse que íamos fazer dobras do discurso. Isso poderia se nomear, na tradição lacaniana, como travessia do fantasma. Uma análise que avança chega ainda mais longe. E esse mais longe tem a ver com esse lugar do Outro e com passar da incompletude do Inconsciente ao limite do real. Lacan o diz a seu modo, não há Outro do Outro. Eu digo: avançar em uma análise até seu extremo é produzir a exaustão do Outro – o esgotamento da ideia de que há Outro. Digo-o a vocês com um relato muito simpático. Uma vez alguém perguntou ao filósofo espanhol Miguel de Unamuno: – Diga-nos, Dom Miguel, que opina da vida mais além? Unamuno respondeu: – Não vou discutir se há ou não há vida mais além, a única coisa que peço é que me deixem vivê-las uma por vez. A exaustão do Outro quer dizer que o sujeito já não espera que venha alguém, algum Outro, pode ser o Pai nosso que estais nos céus, ou pode ser um líder autoritário, porque, para que haja um ditador, como dizia Étienne de La Boétie – o amigo de juventude de Montaigne –, tem que haver muita gente disposta a se submeter voluntariamente ao tirano. E por que tanta gente se submete voluntariamente ao tirano? É, como dizia Freud, um anelo infantil, quero um pai que me proteja, quero alguém que responda pela manhã. Quando as meninas dizem à mamãe, – mamãe, o que eu boto hoje? A alternativa implica uma ética que não é tão fácil de sustentar, e é que como nada garante o resultado, somos cada dia convidados ao ato. E não vão pensar que isso é algo que é solucionado definitivamente. Nossa estrutura é a do palimpsesto. Digo-o a vocês em termos atualizados, especialmente para os mais jovens, vão ver que juvenil sou em meu pensamento, vou tomar o PC – quando era jovem, PC era Partido Comunista, agora é “personal computer”. No “personal computer”, salvo que vocês o apaguem, tudo o que entra fica gravado. Se fizemos a passagem, temos então a possibilidade contingente – e o contingente já implica o real, nada o garante – de que não nos deixemos aprisionar por esse gosto do Outro. Nem de encarnar o Outro nem de submeter-nos ao Outro. Mas podem ser criadas condições sociais, como na Alemanha nos anos 20, e de pronto o povo mais culto da Europa faz o que a História mostrou até o horror. Não há garantia. Digo-o para que se assustem? Não, ao contrário. Digo-o para que estejamos , como dizemos com Lacan, advertidos. E então, já não se trata só da lógica da incompletude, estamos dando um passinho a mais e se trata de uma lógica que tem a ver com o real, e nesse caso com o real de nossa estrutura. É a lógica do “pas-tout”, é a lógica do não-todo. Se exercita na análise, não só por intervenções no simbólico – como é a intervenção que conhecemos como interpretação –, mas por intervenções também no imaginário e no real. Por exemplo, às vezes, não digo que suceda com vocês, mas às vezes alguém diz: – e deram a esse aí o fim de análise? Quando alguém diz isso, com quem está comparando? É evidente que o compara com um ideal. Sabemos que quando muitos terminam sua análise é quando outros têm a sorte de que a começam. Temos que aceitar também que um fim de análise nos enfrenta com o Não-todo. Quando eu era um jovem imberbe, meu mestre era Pichón-Riviere – muitos de vocês o terão conhecido. Eu supervisionava com ele e me lembro de que me incomodava. Claro, alguém é jovem, quer mudar o mundo, crê que se pode mudar tudo; então às vezes me dizia: – mas o que quer obter com esse paciente? Não pode mais que isso. E eu pensava, perdoem a grosseria, é um velho cagão! Está velho, não tem energia. E depois descobria que não era que estivesse velho e que não tinha energia, sabia o que dizia. Tive que bater várias vezes a cabeça contra a parede para admitir que cada análise tem seu próprio fim, há aí também um não-todo. Também nós, os psicanalistas, somos convidados a receber o que nossa disciplina nos ensina.

Referências

LACAN,J.O seminário,livro,11:os quatro conceitos fundamentais da psicanálise[1964].Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor,1985.

LACAN,J.O seminário,livro,14:a lógica do fantasma[1966/1967].Recife:CEF.Publicação para circulação interna,2008.

LACAN,J.O seminário:o ato psicanalítico[1967/1968].Escola de Estudos Psicanalíticos.Publicação para circulação interna,2001.

WEIL,Simone.A gravidade e a graça.Liboa:Relógiod’Àgua,2004.



[1] Trabalho  apresentado  nas Jornadas Clínicas da APPOA: Dizer e fazer em análise, realizadas  em  Porto Alegre, 2010. Texto originalmente publicado na Revista da Associação Psicanaítica de Porto Alegre: Tempo – Ato – Memória, n°39, Jul-Dez/2010, Porto Alegre.

[2] Psicanalista. Membro da Escuela Freudiana de Buenas Aires ,dentre suas  publicações: Las intervenciones del analista(Agalma,2004)El sujetp borgeano (Agalma, 2005, Lectura dela Seminário L’etourdit (Escuela Freudiana de Bunos Aires,2007). E-mail: Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

[3] Tradução:  je ne pense pas:  eu não penso,  alienation:  alienação, sujet:  sujeito,  ou je ne pense pas: onde     eu não  penso, ou je ne suis pas: ondee u não eu não sou, transfert: transferencia, lá oú c’etait: lá ondee u era, faux être: falso ser, n’y être pas: não ser mais aí.